(decisão liminar do STF, com efeito vinculante, declara “legal” o aborto de crianças anencéfalas)
“Em outros países, a legislação sobre o aborto foi formada por uma série de acordos políticos e legislativos. Nos Estados Unidos, porém, a legislação foi imposta não depois de lutas e acordos políticos, mas sim por um decreto do Supremo Tribunal”.
A frase acima é de Ronald Dworkin em sua obra “Domínio da vida” (São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 6). Observa esse autor que, segundo muitos analistas, é por esse motivo que nos EUA ocorre tanta indignação contra o aborto. De fato, em 1973, a Suprema Corte de Washington, na célebre decisão Roe versus Wade, por uma votação de sete a dois, declarou inconstitucional a legislação do Texas que incriminava o aborto. “Foi mais adiante [prossegue Dworkin]: afirmou, de fato, que qualquer lei estadual que proibisse o aborto para proteger o feto nos primeiros dois trimestres de gravidez – antes do sétimo mês – era inconstitucional. […] De um só golpe, em Washington, um tribunal de nove juízes que haviam sido nomeados e não eleitos para seus cargos, e que nem foram unânimes em sua decisão, mudara radicalmente as leis de quase todos os cinquenta estados norte-americanos” (idem, p. 7).
É de se temer que o mesmo esteja acontecendo no Brasil. No dia 1º de julho de 2004, o Ministro Marco Aurélio emitiu uma decisão liminar, mas com eficácia imediata e efeito vinculante, reconhecendo à gestante o direito “constitucional” de praticar aborto no caso de se constatar, a partir de laudo médico, que seu bebê padece de anencefalia (ausência de cérebro). A liminar decidiu também suspender o andamento de processos e o efeito das decisões de juízes ou tribunais, ainda não transitadas em julgado, que proibissem tal espécie de aborto. Em outras palavras: por um ato de um único Ministro do Supremo Tribunal Federal, a prática do aborto eugênico (no caso de criança anencéfala) foi declarada “legal”, com proibição expressa de outros juízes ou tribunais decidirem em contrário.
Como foi que isso aconteceu? Os abortistas estavam muito contentes com a multiplicação de alvarás judiciais para a prática de aborto eugênico. Criava-se uma jurisprudência que poderia acabar convertendo-se em lei. No entanto, eles sofreram uma dura derrota quando o Superior Tribunal de Justiça, acolhendo dois pedidos de Habeas Corpus (HC 32159 e HC 32757) cassou duas decisões do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que haviam autorizado o aborto de crianças anencéfalas.
Imaginaram então uma maneira de levar o assunto ao Supremo Tribunal Federal, a fim de que ele se pronunciasse em favor do aborto. O meio encontrado foi uma ação denominada Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). O autor da ação foi a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), patrocinada pelo advogado Luís Roberto Barroso. A ação (ADPF 54) foi protocolada junto ao STF no dia 17 de junho de 2004 e distribuída para o Ministro Marco Aurélio. Argumentava a parte autora (CNTS) que, ao se proibir o aborto de crianças anencéfalas, estava-se descumprindo um preceito fundamental da Constituição (!). É difícil imaginar que preceito fundamental é descumprido quando se protege a vida de um deficiente. Segundo a entidade impetrante, ao se obrigar a gestante a não matar seu filho gravemente deficiente, estaria sendo violado o princípio da dignidade humana (!), da legalidade (!), da liberdade e autonomia da vontade (!), bem como os princípios relacionados com a saúde (!). Não é brincadeira. Confira-se a íntegra da decisão do Ministro, em que é apresentado o relatório da petição.
Em 23 de junho de 2004, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) protocolou uma petição requerendo ser admitida no processo na qualidade de “amicus curiae” (amigo da corte), pedido esse que foi indeferido pelo Ministro em 25 de junho de 2004. No dia 1º de julho de 2004, às 13 horas, era detonada a bomba: Marco Aurélio proferia a decisão liminar em favor do aborto, com efeito vinculante para todo o país.
Ora, todas as decisões judiciais têm que ser fundamentadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX, Constituição Federal). Qual foi a fundamentação da decisão do Ministro? Segundo suas próprias palavras, quando é detectada a anencefalia em um bebê, “a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo (sic). Se assim é – e ninguém ousa contestar (sic) -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade“.
Note-se que, para Marco Aurélio, a criança anencéfala não é viva e nunca poderá tornar-se viva. Embora ela tenha um coração pulsando, embora reaja a estímulos nervosos, embora movimente-se dentro do útero, embora se alimente e respire pela placenta, ela não tem vida! E mais: a ela nunca poderá tornar-se um ser vivo! Continuará sem vida, ainda que nasça, que respire com os próprios pulmões e que continue com o coração batendo por alguns minutos ou por alguns dias! E o Ministro está tão certo disso que, segundo ele, “ninguém ousa contestar”!
Ausente vida humana intra-uterina, conclui o Ministro que não há que se falar em aborto. A remoção do bebê (que não é um ser humano ou, se é, não tem vida) seria um fato atípico, que não caracterizaria crime. Proibir tal “antecipação do parto” seria uma afronta à dignidade humana, à legalidade, à liberdade e à autonomia da vontade.
Graças a Deus, ao contrário do que afirmou o Ministro, há quem ouse contestar suas afirmações. A CNBB, em nota oficial expedida no mesmo dia da liminar, assim se pronunciou:
A Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil foi surpreendida pela decisão solitária do Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal que, nos Autos de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, entendeu que não há crime de aborto nos casos de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Desta forma, autorizou a interrupção voluntária da gestação de uma vida humana.
Dada a gravidade do caso, a CNBB julga oportuno que tal decisão tivesse sido tomada após ampla reflexão por parte da sociedade e a participação do Plenário da Suprema Corte.
A CNBB confia que o senso de Direito e de Justiça dos Membros do Supremo Tribunal Federal fará reverter a decisão ora tomada.
De fato, a Vida humana, que se forma no seio da mãe, já é um novo sujeito de direitos e, por isso, tal vida deve ser respeitada sempre, não importando o estágio ou a condição em que ela se encontre.
Brasília, 01 de julho de 2004
Cardeal Geraldo Majella Agnelo
Presidente da CNBB
Dom Antônio Celso de Queirós
Vice-Presidente da CNBB
Dom Odilo Pedro Scherer
Secretário-Geral da CNBB
(clique aqui para obter a nota da CNBB em arquivo PDF)
Quem lê a lei 9882/1999, que dispõe sobre a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, observa que seu artigo 5º prevê a concessão de liminar “por decisão da maioria absoluta de seus membros”. Como então o Ministro concedeu a liminar sozinho? É que o parágrafo 1º do mesmo artigo diz que “em caso de extrema necessidade ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar ad referendum do Tribunal Pleno”. Entendeu, portanto, o Ministro relator que havia uma necessidade extrema (!) ou um perigo de lesão grave (!) que justificava impor a todo o país a obrigação de não proteger os mais deficientes de todos os deficientes: os nascituros anencéfalos.
Tal decisão é provisória. O Ministério Público Federal (representado pelo Procurador Geral da República Dr. Cláudio Fonteles) nem sequer ainda foi consultado. Os outros dez Ministros poderão confirmar ou cassar a liminar. No entanto – e isto é o mais grave – a liminar já está em vigor e tem efeito vinculante: nenhum juiz ou tribunal poderá emitir uma decisão contra ela, até que o Tribunal Pleno se manifeste.
Imaginemos uma hipótese ainda mais apavorante. Se, por absurdo, o STF confirmar a liminar do Ministro Marco Aurélio, tal decisão, além de ser vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Público (art. 10, § 3º, da Lei 9882/1999) será irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória (art. 12 da mesma lei). Estará assim “legalizado” o aborto eugênico no país. E o autor dessa “legalização” não terá sido o Poder Legislativo, mas o Judiciário, que não tem o a faculdade de legislar, mas tão-somente de aplicar a lei ao caso concreto.
Costuma-se dizer que, por ser a mais alta instância do Poder Judiciário no Brasil, o Supremo Tribunal Federal tem o direito de “errar por último”. Mais grave que errar por último, porém, é impor o erro aos subalternos, que não terão a quem recorrer.
No sistema jurídico brasileiro, cada juiz e cada tribunal goza de independência. Um juiz de primeira instância pode decidir contra o que já decidiu um tribunal em caso análogo. E um tribunal pode decidir contra o que já foi decidido por algum tribunal superior. Nos Estados Unidos, porém, as decisões da Suprema Corte têm efeito vinculante: nenhum juiz ou tribunal pode decidir contra elas. Foi assim que o aborto entrou naquele país.
É de se temer que o mesmo ocorra no Brasil, sobretudo quando, no projeto de reforma do Judiciário em tramitação no Congresso Nacional, tende-se a conceder ao Supremo Tribunal Federal o poder de emitir “súmulas vinculantes”.
Anápolis, 04 de julho de 2004
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis