Muitas pessoas, contrárias ao aborto (como tem que ser todo ser humano digno deste nome) mostram-se perplexas diante da situação em que se “precisa”(?) escolher entre a vida da mãe e a do filho. Convém aqui formular bem o problema para se chegar a uma resposta adequada. Trata-se do caso em que a vida da mãe e/ou a do filho corre riscos, e nem sempre é possível salvar ambos. Que fazer?

1. A vida da criança é tão sagrada e inviolável como a vida da mãe. A mesma repulsa que nos causa a idéia de matar a mãe como meio de salvar a criança deve-nos causar a idéia de matar a criança como meio de salvar a mãe. O fim não justifica os meios. Nunca é lícito, nem sequer por razões, gravíssimas, ensinava o Papa Paulo VI, fazer o mal, para que daí provenha o bem (Encíclica Humanae Vitae, nº 14). Este princípio não admite nenhuma exceção. Não seria lícito, por exemplo, dizer uma pequena mentira, para assim converter o mundo inteiro. Um fim bom, por mais sublime que seja, não justifica um meio mau. Nem se pode argüir que o bem resultante “compense” o mal praticado, pois nunca temos a permissão de praticar o mal.

2. Diante da impossibilidade de salvar duas vidas, podemos e devemos salvar uma delas. Diante da cena de duas pessoas se afogando no mar, o salva-vidas deve salvar uma delas, ainda que a outra venha a morrer naturalmente. Neste caso, a morte de uma delas não terá sido provocada pelo nadador. E a salvação da outra terá sido obtida diretamente, e não por meio da morte da primeira. Da mesma forma, o médico, na impossibilidade de salvar mãe e filho, pode e deve salvar um deles, mas nunca por meio da morte do outro. A morte de um dos dois pode ser tolerada como um efeito, mas nunca querida como fim ou como meio, nem provocada diretamente.

3. Vamos tentar ilustrar isto com um exemplo. Uma mulher enferma precisa urgentemente tomar um remédio. Acontece, porém, que ela está grávida e o remédio que ela deve tomar para ficar curada pode pôr em risco a vida da criança. Ela pode ou não pode ingerir o medicamento? 
Notemos que a ingestão do remédio não tem por fim matar a criança, mas sim curar a mãe. Notemos ainda que esta cura é obtida diretamente pelo remédio, e não por meio da morte da criança. Se a criança vier a morrer, isto será um efeito de uma ação boa (ou pelo menos, indiferente): tomar o remédio. Este não é o efeito principal da ação, mas um efeito secundário. Também não é um efeito querido, mas tão-somente tolerado.

Se não houver outro meio de curar a mãe a não ser por meio dessa ação boa (ou pelo menos indiferente) que tem um segundo efeito mau, e se houver proporção entre o mal a ser tolerado (a possibilidade da morte da criança) e o bem a ser desejado (a salvação da mãe) então é lícito tomar o remédio.

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4. Espero que o leitor tenha observado, no exemplo anterior, que um mal nunca pode ser praticado. Quando muito, ele pode ser tolerado como um efeito secundário de uma ação boa ou indiferente. Aliás, a maioria de nossas ações, por mais retas que sejam, trazem consigo efeitos indesejados, mas que às vezes é preciso tolerar. Lutar contra a legalização do aborto, por exemplo, pode trazer efeitos maus, como o surgimento de discórdias, calúnias e inimizades, mas é preciso tolerá-los uma vez que o bem almejado (a salvação dos nascituros) é irrenunciável.

5. Um caso bem diferente, e tão estranho que é difícil até imaginá-lo, seria aquele em que a salvação da mãe fosse obtida por meio da morte da criança. O aborto então seria, não somente tolerado como efeito, mas querido como meio e diretamente provocado. Tal ato seria gravemente imoral, ainda que praticado com um fim bom. Se existisse o dilema “matar diretamente a mãe para salvar a criança” ou “matar diretamente a criança para salvar a mãe”, nós nada poderíamos fazer a não ser tratar de ambas com cuidados paliativos. Mas esse caso existe?

6. Os médicos garantem que não. Cito um antigo testemunho, do médico-legal João Batista de Oliveira e Costa Júnior. Já em 1965 dizia ele em sua aula inaugural intitulada “Por que ainda o aborto terapêutico?” dirigida a alunos de Direito da USP: “melhor se chamaria esse feticídio de aborto desnecessário ou aborto antiterapêutico“. E explicava: “Ante os processos atuais da terapêutica e da assistência pré-natal, o aborto não é o único recurso; pelo contrário, é o pior meio, ou melhor, não é meio algum para se preservar a vida da gestante. Por que invocá-lo, então? Seria o tradicionalismo, a ignorância ou o interesse em ater-se a costumes injustificáveis? Por indicação médica não o é, presentemente. Demonstrem, pois, os legisladores coragem suficiente para fundamentar seus verdadeiros motivos, e não envolvam a Medicina no protecionismo ao crime desejado. Digam, sem subterfúgios, o que os soviéticos, os suecos, os dinamarqueses e outros já disseram. Assumam integralmente a responsabilidade de seus atos” (Por quê, ainda, o aborto terapêutico, Preleção inaugural dos Cursos Jurídicos da Faculdade de Direito da USP de 1965, Revista da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 1965, volume IX, p.326) Referindo-se ao inciso I do artigo 128 do Código Penal (que isenta de pena o médico que pratica o aborto quando não há outro meio de salvar a vida da mãe), Costa Júnior foi taxativo: “o que realmente, o dispositivo enseja é favorecer e ocultar o verdadeiro aborto criminoso” (Revista da Faculdade de Direito, USP, São Paulo, 1965, volume IX, p. 314 e 316).

Declarações recentes da Academia Nacional de Medicina de Buenos Aires (28/7/94) e da Academia de Medicina do Paraguai (4/7/96) declaram que os casos de aborto “necessários” são inexistentes. Esta última chega a dizer: “En casos extremos el aborto es un agravante y no una solución al problema“.

7. Se o caso do aborto “necessário” não existe, então o art. 128 inciso I do Código Penal é totalmente inócuo, pelo menos para os médicos fiéis a seu juramento profissional. Para os médicos inescrupulosos, esta cláusula é “útil” e até mesmo “necessária” para ocultar seu desprezo pela vida humana nascente. Por obra e (des)graça deste dispositivo, há médicos que não hesitam em prescrever o aborto para uma gestante enferma. Não que ela corra iminente risco de vida. Mas é mais cômodo eliminar o mais fraco do que levar até o fim uma gravidez complicada…

Anápolis, 1º de outubro de 1997.

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Presidente do Pró-Vida de Anápolis.

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