Carlos Alberto Di Franco
(O Estado de S. Paulo, 02/08/2004, p. A2)
Recente liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizando a interrupção da gestação de fetos com anencefalia, reacendeu o debate sobre a legalização do aborto no Brasil. A decisão do ministro, a quem talvez tenham chegado apenas dados médicos parciais e, certamente, influenciado pela força de compreensíveis argumentos emocionais (o presumível sofrimento da gestante), será em breve submetida à discussão do plenário do STF.
Como sabe o caro leitor, a anencefalia é uma malformação grave caracterizada por ausência dos ossos do crânio, exceto pelo osso frontal, e inexistência dos hemisférios cerebrais. O feto costuma ter uma sobrevida extrauterina curta. A incidência é de 0,1 a 0,7 caso em cada mil nascidos, com predomínio do sexo feminino. Segundo dados do Ministério da Saúde, ocorrem no Brasil, em média, 616 mortes por ano. Atualmente, em países do norte da Europa é preconizado o uso do ácido fólico no primeiro trimestre da gestação para prevenir a anencefalia. O resultado, notável, indica uma redução de um terço na incidência da patologia. Alguns autores afirmam que o não-aparecimento de defeitos no tubo neural chega a atingir 85%. Trata-se, sem dúvida, de uma experiência que deveria ser valorizada pelo nosso Ministério da Saúde.
Os argumentos favoráveis à liminar do ministro Marco Aurélio Mello se apóiam em supostos riscos físicos e psíquicos para a gestante. Pelo que pude apurar com médicos e especialistas da área, o argumento é falso. A gestação de um feto anencéfalo é absolutamente normal. Muito mais graves e reais são os riscos que envolvem a prática do aborto. Além disso, embora remotas, existem possibilidades de erros de diagnóstico. Por isso, a autorização prévia, genérica, seria, caro leitor, uma irresponsabilidade ética.
No tocante ao inegável sofrimento vivido pela gestante, reproduzo o depoimento de uma mãe que, não obstante a dor provocada pela morte do feto anencéfalo, justificou a sua decisão de levar a gravidez até o fim. Sua carta, publicada no jornal O Globo de 9 de julho passado, é um contundente recado aos ministros do STF. “Lamentável o comentário do ministro Marco Aurélio (STF) afirmando que a gestante convive com a triste realidade do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Fui mãe de uma criança com anencefalia e posso afirmar que durante nove meses de gestação convivi com um ser vivo, que se mexia, que reagia aos estímulos externos como qualquer criança no útero. Afirmo também que não existe dano à integridade moral e psicológica da mãe. O problema é que estamos vivendo numa sociedade hedonista e queremos extirpar tudo o que nos cause o mínimo incômodo. Pensemos, pois, na decisão tomada, porque, se estamos autorizando a morte dos que não conseguirão fazer história de vida, cedo ou tarde autorizaremos a antecipação do fim da vida dos que não conseguem se lembrar da sua história, como os portadores do mal de Alzheimer”, escreveu a leitora Ana Lúcia dos Santos Alonso Guimarães.
Trata-se de uma carta impressionante e premonitória. O aborto, estou certo, é o primeiro elo da imensa cadeia da violência e da cultura da morte. Após a implantação do aborto descendente (eliminação do feto), virão inúmeras manifestações do aborto ascendente (supressão da vida do doente) – a eutanásia já está sendo incorporada ao sistema legal de países europeus –, do idoso e, quem sabe, de todos os que constituem as classes passivas e indesejadas da sociedade.
A eventual aprovação do aborto de fetos com anencefalia abre um perigoso precedente antidemocrático. Trata- se, na verdade, de um passo na estratégia dos que defendem o aborto amplo e irrestrito. Outros virão, não duvidemos. A democracia é, sem dúvida, o regime que mais genuinamente respeita a dignidade da pessoa humana. Qualquer construção democrática, autêntica, e não apenas de fachada, reclama os alicerces dos valores éticos fundamentais. Por isso, não obstante a força do marketing emocional que apóia as campanhas abortistas, é preocupante o veneno antidemocrático que está no fundo dos slogans abortistas. Não se compreende de que modo obteremos uma sociedade mais justa e digna para seres humanos (os adultos) por meio da organização da morte de outros (as crianças não nascidas). Há um elo indissolúvel entre a prática do aborto, o massacre do Carandiru, a chacina da Candelária e outras agressões à vida: o ser humano é encarado como objeto descartável.
Os argumentos esgrimidos em defesa dessas ações, alguns cruéis, outros carregados de eufemismos emocionais, não conseguem ocultar o desrespeito ao primeiro direito humano fundamental, base da sociedade democrática: o direito à vida.
Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo para Editores e professor de Ética Jornalística, é diretor para o Brasil de Mediacción–Consultores em Direção Estratégica de Mídia (Universidade de Navarra). E-mail: difranco@ceu.org.br